Um
grupo de cinco pesquisadores encontrou no Hotel Vila Bahia, no Cruzeiro
de São Francisco, Pelourinho, o que pode ser a prova mais antiga da
prática do judaísmo em toda a América Portuguesa
O que para um leigo
não passa de uma banheira antiga, para um judeu ortodoxo é tão
importante quanto uma sinagoga - o templo sagrado dos israelitas. Por si
só, a mikvé (isso mesmo, mikvé) que ilustra essa página, já seria uma
relíquia.
Mas e se o local onde são realizados banhos sagrados
para purificação judaica for do século XVII, período auge da Inquisição
católica na Bahia? E se ele foi construído em um casarão antigo, no
Centro Histórico de Salvador, a uns 15 passos da Igreja de São
Francisco, bem na cara do Santo Ofício? E se ele é um segredo sagrado,
guardado por quase quatro séculos. Aí, além do status de relíquia, o
material é capaz de mudar a História.
Descoberta em casarão em Salvador pode mudar história do judaísmo no Brasil
Um
grupo de cinco pesquisadores encontrou no Hotel Vila Bahia, no Cruzeiro
de São Francisco, Pelourinho, o que pode ser a prova mais antiga da
prática do judaísmo em toda a América Portuguesa. E o mais curioso: ela
teria pertencido a um cristão-novo, como eram conhecidos os judeus que,
por decreto do rei de Portugal D. Manuel I, em 1497 foram convertidos à
força em católicos.
O fato de ser uma mikvé já tornaria o
material algo único na Bahia. Mas, se a época da sua construção
coincidir com o período no qual os judeus eram perseguidos, isso a
transformaria em um achado arqueológico único no país. Apenas no Recife
há uma sinagoga tão antiga, construída na primeira metade do século
XVII. Só que ela é do período de dominação holandesa naquela região.
Diferente dos portugueses, os holandeses toleravam judeus.
Ainda
não há 100% de certeza de que a peça é uma mikvé. Mas três anos de
pesquisas mostram que isso é quase certo. “Tudo leva a crer que é uma
mikvé tradicional. As dimensões de comprimento e largura, a capacidade
volumétrica, o reservatório de água da chuva e até a ausência de um ralo
nos fazem crer que é uma mikvé”, diz a historiadora Silvana Severs, do
grupo responsável pela descoberta. Descoberta
O
equipamento do Pelourinho foi encontrado em 2006. Seu valor histórico e
arquitetônico, porém, se revelou por acaso. Uma reforma realizada no
casarão fez com que o francês Bruno Guinard, diretor do hotel,
promovesse a restauração do que acreditava ser um “banho português”.
“Estava debaixo de escombros”, descreve Bruno. “Chamei alguns
especialistas que disseram se tratar de um simples ‘banho português’.
Mas senti que era algo mais e resolvi restaurar”.
Dois anos
depois, um judeu ortodoxo que visitava o hotel falou pela primeira vez
que aquilo poderia ser uma mikvé. Depois, uma cliente do restaurante,
também judia, desconfiou da construção. Essa mesma cliente, a
nutricionista Berta Wainstein, em 2009, propôs que um grupo de pesquisa
fosse montado. “Sou uma curiosa, uma apaixonada. Quero deixar esse
patrimônio para a Bahia”, diz Berta.
Professora da Universidade
do Estado da Bahia (Uneb) e historiadora do Instituto do Patrimônio
Histórico, Artístico e Cultural (Iphan), Suzana Severs diz que falta
apenas o estudo arqueológico para datar a construção, o que confirmaria
se é realmente do século XVII. Aliás, a própria idade do casarão, que
fica na esquina da rua da Ordem Terceira do São Francisco, conta a
favor. “O imóvel é daquele período. Além do mais, confirmamos que os
azulejos que recobrem a mikvé são também do século XVII”.
Ousadia
Junto
com a datação da peça, será preciso mais pesquisa. Há a suspeita, por
exemplo, de que o primeiro proprietário do casarão chamava-se Francisco
de Oliveira Porto. O nome é português, mas essa pode ter sido apenas
mais uma forma de ele se proteger dos inquisidores. “Precisamos saber se
ele era realmente um cristão-novo e realizava rituais judaicos”, diz
Suzana.
É preciso conhecer a força da inquisição para entender a
ousadia de quem praticava o judaísmo na Bahia seiscentista. “A simples
suspeita de que um indivíduo mantinha hábitos judaicos já seria motivo
para ser levado à fogueira. Imagine ter uma mikvé!”, analisa Anita
Novinsky, da Universidade de São Paulo (USP) e uma das maiores
autoridades do país em cristãos-novos.
Ela explica que ainda
assim houve quem mantivesse a tradição - foram chamados de criptojudeus.
“Se havia prática judaica em Salvador? Ô, se havia. A Bahia foi o
centro do judaísmo no Brasil do século XVII. Provavelmente, o homem que
construiu o casarão era um criptojudeu”.
Rabino: 'Estou 100% convencido'
Ainda
que a cautela seja um dos princípios do grupo de pesquisa, o rabino
Ariel Oliszemski, que é argentino e mora no Rio Grande do Sul, acredita
piamente que a construção instalada no Hotel Vila Bahia se trata de um
exemplar antigo do banho sagrado dos judeus.
“Estou 100%
convencido. Todas as características são de uma mikvé”. Chamado a
participar dos estudos, ele explica que o banho sagrado tem diversos
usos. Mas, basicamente, representa o momento de se purificar para uma
etapa nova da vida.“A mulher quando vai se casar ou está ‘impura’ pela
menstruação. As pessoas que se convertem ao judaísmo. Esses devem se
banhar”.
Independente da
função, o que não se pode negar é a importância de uma mikvé. “Não
existe vida judaica sem sinagoga e sem mikvé”, diz o rabino Oliszemski.
Fonte: Correio24horas